24 de abr. de 2014

Como se constrói uma Narrativa Fotográfica?

Por: Eliana Rezende

Pare, pense e responda:
Você vai fazer uma longa viagem, somente poderá levar uma mala de mão com alguns pertences. O quê você levaria, quais objetos seriam sua escolha? O que seria fundamental?


Em 1995, a Secretaria de Saúde do Estado de New York, desativou o Sanatório Mental de Willard, em Syracuse. um edifício de arquitetura vitoriana que abriu suas portas em 1893. Antes de concluir o fechamento, o funcionário Bev Courtwright, foi incumbido de fazer uma vistoria para determinar o que poderia ser recuperado (antiguidades, mobília, etc.). Ao executá-la, o funcionário abriu a porta de um dos sótãos, e descobriu um tesouro: uma coleção de mais de 400 malas (429, mais precisamente) com pertences de antigos pacientes da instituição, datando de 1910 até fins dos anos 1960.

Craig Williams adquiriu as malas para o Museu do Estado de New York e as incorporou à Coleção Permanente da instituição. No ano de 2003 ela originou uma exposição que o fotógrafo Jon Crispin pode ver e interessou-se em documentar através de registros fotográficos tais pertences. Contar um pouco desses pacientes que, a partir de um dado momento de suas vidas foram internados e viveram ali até suas mortes. Poderiam ser trilhas para as histórias prováveis desses pacientes a partir daquilo que carregaram consigo no momento de sua internação.

A escolha deste argumento para meu post não foi aleatória. Achei belíssima a proposta do artista e a forma sensível com que lançou luz aos objetos para que, combinados entre si, fossem crônica do pensado e vivido por um paciente recluso devido aos fantasmas mentais que os habitavam.
Através do singelo olhar do fotógrafo, foi-nos possível conhecer o conjunto de objetos, e descobrir neles indícios e links da vida vivida e sentida desses pacientes.

Seu ensaio fotográfico tornou-se, pelo seu conjunto, uma narrativa.

Convido-os a vir comigo e ver o resultado desse ensaio. Preparei uma apresentação para que tenham a oportunidade de perscrutar algumas dessas muitas vidas e seus fragmentos:


Conheça mais o projeto e seu idealizador clicando aqui:

Na área de História chamamos de Cultura Material o trabalho de ver nesses objetos pequenas notas de existências e pequenos trechos de possíveis longas histórias. Da reunião desses objetos tem-se uma micro-história. Os objetos assim, possuem uma biografia, uma trajetória que o insere em um determinado contexto.

São como pontos que tecem um fio... cada fio conta uma história.

Como destaco em um artigo que escrevi sobre a fotografia e cultura material, que você pode ler na íntegra aqui, de onde o trecho abaixo foi tirado:
"Seria bom frisar que, no caso do documento fotográfico, temos sempre um objeto único e, portanto, com características muito peculiares. No entanto, se tecermos a rede das tramas que nos trouxeram a estes objetos, sozinhos ou em coleções, chegaremos a horizontes mas amplos." (Rezende, 2007)
Lidar com tais documentos tridimensionais requereu por parte do fotógrafo um cuidado extremo, e mais do que tudo: apoio interdisciplinar de profissionais de várias áreas. Acompanhe um vídeo produzido para mostrar como foi o trabalho de produção do ensaio fotográfico:

Todo esse trabalho feito pelo museu de identificar cada um dos pacientes e suas respectivas malas podem ser conhecidos, eis o link. Gostaria que percebessem porque a História é algo tão fascinante para mim. Na realidade, tais fragmentos abrem janelas de possibilidades que fornecem pontes de acesso, elos que ligam a um outro tempo. Sem estes toda a leitura do conjunto ficaria dificultada.

Ao fotografar tais objetos, o fotógrafo nos direciona o olhar. Fragmenta e enfoca o tema para fixarmos nossa atenção. Depois desse momento, todas as leituras são possíveis a partir do repertório, interesses e indagações de cada um. Um historiador olhará de forma diferente que um autor ficcional, por exemplo. Cada um lançará viés próprio.

As imagens nos remetem a uma certa intimidade de um tempo e de determinadas histórias que estavam perdendo suas referências, identidades e memórias. Confinadas num espaço de reclusão podem ser alcançadas pelos rastros e vestígios que deixaram e que traziam de uma vida pregressa, que teve que ficar do lado de fora dos muros de sua reclusão. Muitos deles deixaram suas vidas ali mesmo na instituição. Nunca mais retornaram às suas origens.

Por serem registros tomados com sensibilidade nos trazem uma beleza quase roubada de uma existência que se foi. Uma história que passou.

O projeto do fotógrafo de fato nos permite caminhar por esse horizonte de análise de documentos e o qual convencionamos chamar de Cultura Material. Lógico que aqui não é uma aula, mas é um meio de conhecerem um pouco outras formas e fontes documentais que servem à pesquisa e à organização documental.

Percebem como 'documento' é uma categoria muito mais ampla do que simplesmente a que o senso comum costuma imaginar?

Ao término, fica a pergunta: conseguiu decidir o que tua mala conteria? Que pistas deixaria para investigações e elucubrações futuras? O que teus vestígios revelariam?

E de tudo o que viu? Qual a sua narrativa?

As minhas narrativas sobre Fotografia e História seguirão em outros posts.

Aguarde!

*
Este post recebeu uma versão atualizada no meu Portal e que pode ser lida aqui:
Fotografia como Documento e Narrativas Possíveis

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Referências:

Ginzburg, Carlo. "Mitos, Emblemas e Sinais - Morfologia e História". São Paulo, Companhia das Letras, 1986. Veja link: 
Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. "Memória e Cultura Material: Documentos Pessoais no Espaço Público".
Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. "A cultura material no estudo das sociedades antigas". Veja link:
Rede, Marcelo. "Estudos de cultura material: uma vertente francesa". Veja link:
Rezende, Eliana Almeida de Souza. "Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade".  Veja link:

Créditos:
Todas as imagens aqui apresentadas são de direitos autorais do fotógrafo Jon Crispin



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Pots relacionados:

Uso de tecnologias como política de preservação de patrimônio cultural - documental
O valor da Memória Institucional no Universo Organizacional

20 de abr. de 2014

Chegamos ao fim da leitura?

Por: Eliana Rezende

De novo sobre leitores e leituras. Instigando todos a pensar um pouco...


Em "Utopia de um homem que está cansado", Borges descreve o encontro do narrador com
um homem de quatro séculos, que vive no futuro – ‘um homem vestido de cinza’, cor que envolve os mensageiros da estranheza em vários contos do escritor argentino – e que faz assustadoras revelações. Uma delas é a extinção da imprensa, “um dos piores males do homem, já que tendia multiplicar até a vertigem textos desnecessários”. (BORGES, 2001, p. 84)
À revelação do desaparecimento da imprensa no mundo do futuro, o narrador responde com um longo discurso:
“Em meu curioso ontem (...) prevalecia a superstição que entre cada tarde e cada manhã acontecem fatos que é uma vergonha ignorar. O planeta estava povoado de espectros coletivos, o Canadá, o Brasil, o Congo Suíço e o Mercado Comum. Quase ninguém sabia a história anterior desses entes platônicos, mas sim os mais ínfimos pormenores do último congresso de pedagogos, a iminente ruptura de relações e as mensagens que os presidentes mandavam, elaboradas pelo secretário do secretário com a prudente imprecisão de que era própria do gênero.
Tudo se lia para o esquecimento, porque em poucas horas o apagariam outras trivialidades. (...)
As imagens e a letra impressa eram mais reais do que as coisas. Só o publicado era verdadeiro”
. (BORGES,1995, p. 85)
A verdade é que neste tempo distante e assustador extinguiram-se não apenas os jornais, mas também os museus e as bibliotecas. Inexistem monumentos, feriados ou espaços de rememoração; inexistem cidades.

Tal como ocorre aqui no texto de Borges, a leitura parece ser feita sob muitas circunstâncias, para o esquecimento.
Gostaria de levá-los a repensar a literatura e suas relações com seus leitores e o contexto de produção de suas obras.

Isso porque a leitura sempre vai além do texto. É preciso tomar em conta o leitor, o escritor, o texto. a época em que o texto é produzido bem como o tempo em que o mesmo é lido. Cada texto assim pode ser sempre recriado, reinventado a cada vez que é reinterpretado e/ou assimilado. Mas vejo que cada vez mais essa forma de ler parece ser algo bem além do que nossa civilização seja capaz de fazer. Distraídos, dispersos e na maioria das vezes ávidos apenas pelo novo que chega, deixa essa possibilidade de leitura para trás.

Para este caso, a leitura talvez esteja encontrando o seu final. O déficit de atenção e a indisposição pela verticalização inviabilizam este tipo de leitura.
A literatura (seja ela de ficção ou não-ficção) e provavelmente seus autores terão que tomar esse dado além dos suportes e grau de interação possível e provável.

Tempos novos, interessantes e de muitos desafios.

Felizmente acho que muito poucos ainda põem em questão o término do livro.
Há algo aqui que envolve a qualidade de leitores. O bom leitor é arguto, perspicaz e caminha com o escritor. Busca todo o tempo interlocução de idéias e conteúdo. E talvez aqui exista a maior fragilidade a ser vencida. O verdadeiro leitor é antes de tudo um ser crítico. Não no sentido pejorativo de gostar ou não das coisas, mas no sentido de saber ser interlocutor fazendo as perguntas adequadas ao lido e as transpondo para seu universo de atuação. 
É assim que se constrói repertório: ler; questionar; reformular e aplicar.

Cada vez mais as pessoas acabam reproduzindo o lido é neste sentido que quero instigar os leitores a irem além do escrito e propor novos caminhos para antigos questionamentos.


Caso queira aprofundar esse tema sugiro a leitura da série de posts que fiz sobre Escritores e Leitores em tempos digitais que você pode clicar aqui, e aqui e também aqui.

Referências:
Danziger, Leila - O Jornal e o Esquecimento

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14 de abr. de 2014

Escravos do celular?

Por: Eliana Rezende


O tema é interessante e talvez por isso esteja na terceira pessoa.
Em maior ou menor grau estamos atropelados e invadidos pelos  meios de comunicação. Diferente do que ocorreu com o telefone fixo quando de seu surgimento, havia um "manual de uso e recomendações" sobre horários e situações.

O ilustrador americano J. J. Sedelmaier, que tem uma coleção das mais belas peças criadas pelo designer industrial Henry Dreyfuss, durante o longo reinado da Western Electric, Bell Telephone Company e AT&T, divulgou recentemente uma pequena preciosidade.


Trata-se do Manual confeccionado em 1950 pela Bell que ensinava o bê-a-bá a quem se iniciava no uso do telefone em casa. Uma delícia de lembrança de tempos idos. Confira:


O ritual de receber ou fazer uma ligação merecia horário e até uma mesinha de canto especial para o digno aparelho. A ligação era sempre recebida sentado e confortavelmente acomodado em uma cadeira ou poltrona. Nada merecia a interrupção da mesma, exceto por problemas de comunicação. Era usual o recolhimento de uma sala e uma porta fechada.  Tinha-se cuidado em não ligar em horários como almoço, jantar e nunca ligávamos após determinado horário.

Creio que não seja o caso de falar de um saudosismo sem sentido.
Talvez devamos pensar o quanto nossos hábitos foram transformados com uso de celulares.
Se tomarmos o exemplo do manual aqui apresentado, notamos o quanto nos afastamos do sentido de uso para alguns fins. Os telefones celulares invadem espaços públicos e muitas vezes nos "invadem" tornando pública a vivência e intimidade alheia.

A pergunta que fica é: será que com a aposentadoria do telefone com fio, todo o conjunto de boas maneiras também foi aposentado?

Óbvio que não estou aqui a divagar sobre um saudosismo sem sentido. Mas vamos lá:

Hoje as pessoas não se separam dos mesmos e eu pessoalmente já vi aeromoças tendo que discutir com passageiros que insistem em falar ao telefone, mesmo após o fechamento da aeronave. Os aeroportos nesse sentido, são exemplos de pessoas que são exímias no seu exercício da falta de respeito cotidiano: em busca de fechar um último negócio, marcar a última reunião ou dar a última recomendação às pessoas. Simplesmente esquecem-se de que partilham um espaço público e como tal não diz respeito a quem está ao lado sua vida pessoal ou seus negócios.  As salas de embarque parecem espaços de autistas (com minhas desculpas aos autistas), pessoas ensimesmadas (será que assim que se escreve) e sem disposição alguma a relacionar-se com o que não está devidamente garantido por uma blindagem virtual.  De fato, novos tempos e nem por isso melhores!

Os sons dos celulares que são rádios conseguem ser ainda mais invasivos e causar mais desconforto, pois além de ouvirmos quem está deste lado, ainda somos obrigados a ouvir quem está do outro lado com voz distorcida e barulhenta. Há ainda os que "gritam" e gesticulam e fazem-nos saber de tudo o que lhe vai à mente.

Infelizmente, perdeu-se a polidez da vida vivida em público e as pessoas esquecem-se do que seja educação neste sentido.

Há os que teimam em usar seu telefone no cinema, teatro e que sacam seus telefones não apenas para telefonar, mas para filmar e fotografar o alheio (um espetáculo de desrespeito à arte e a quem quer que seja que esteja numa situação de apresentar-se).

E porque não falamos dos celulares que saem das pias de banheiros e lavatórios direto para mesas de bar e restaurantes?! Isso é de fato o fim!
Qual então seria o caminho?
Alguém tem palpites?



Em verdade, deveríamos nos tornar donos do objeto e não o seu contrário!
Costumo dizer que o celular é um rastreador e que serve mesmo como uma tornozeleira de prisioneiro. Mas diferentes de outras algemas, essas temos as chaves e podemos escolher pôr ou tirar a hora que desejamos. Em geral, todos somos "rastreados" com nosso consentimento e o que ocorre é muito mais uma compulsão pelo ausente e uma infinita vontade de ser notado ou lembrado. Inúmeras discussões estão sendo frequentes no sentido de apontar para o grau de insegurança que muitos têm em não serem lembrados por meio de mensagens ou telefonemas.

Vejo cada vez mais que seria fundamental repensarmos as etiquetas de convívio social. Interessante pensarmos que este mundo tão conectado e interligado gera fossos gigantes entre pessoas que às vezes partilham o mesmo quarto ou como no caso aqui: partilham a mesma mesa de bar. Cada um muitas vezes trouxe apenas o corpo e largou a alma e a concentração em outra parte.

Mundo interessante o nosso: conseguiu separar o que só na ficção e algumas religiões se via, ou seja, o corpo da alma!

Estamos assistindo uma profunda transformação social, cultural, de tecnologias e costumes. Só que estas não vieram acompanhadas de um sentido de autoconhecimento e refinamento pessoal (aqui entendido como o que é o nosso espaço e o que é o do outro). Esse equívoco comportamental tem levado muitos a viver este desconforto, em especial em relação aos que passam longe das regras mínimas de convívio.
Há um reforço no mundo contemporâneo por atitudes egocentradas. Onde as pessoas simplesmente não acham que erram, porquê consideram que o que fazem é seu direito.


Entramos de fato na situação clássica de estendermos ao outro o direito de controlar nossas ações. A partir do momento que estabelecemos essa relação entramos na situação de consentimento. Aí entram todas as formas de controle e cobrança.

Acho que conseguir manter a sanidade de hierarquizar prioridades, pessoas e lugares será o único caminho de continuarmos a ser donos de nós e de nossas ações. Se assim não fizermos, teremos outras pessoas e gadgets fazendo isso por nós.

Esta é a medida das coisas: entender que qualquer forma de tecnologia cumpre seu dever se ocupa o seu espaço devido em nossas vidas, sem escravizar-nos nem impor-nos comportamentos e ações.

A sociedade como um todo terá que aprender como dividir, ceder espaços e adequar posturas. O caminho parece longo, e em vários casos, as pessoas não parecem entender o quanto isto é importante para uma coexistência pacífica entre todos.
Meu celular tem horário de funcionamento e respeita o fim de semana... para o meu bem e de todos os que me cercam!


A ideia da intermediação por meios externos se estende a muitas de nossas formas de convívio e relação com o mundo de hoje. Encapsulamo-nos em diferentes formas que produzem uma relação indireta: é o caso dos carros, das redes sociais, dos gadgets em geral e claro está: do celular.

Estas vias externas retiram a sensação do olho no olho e colocam o indivíduo sempre às voltas com ele próprio e com o que considera seu universo de ação e direito. É só olharmos na rua e veremos a quantidade de pessoas com seus fones de ouvidos fechados cada um em seu mundo.

Este ainda é um bom caso. Pior são os que estendem seus desejos e os impõem aos outros: caso típico das conversas altas ao celular e as músicas tocadas em alto e bom som de seus carros (analisados pela psicologia como uma forma do indivíduo conceber o que seja o seu próprio corpo!).

Tomando-se por este olhar, não sei para onde vamos, mas sei que vamos mal!

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11 de abr. de 2014

Curadoria de Conteúdos: O que é? Quem faz? Como faz?

Escrito e lido por: Eliana Rezende



(escolha a opção abrir com: 
Music Player for Google Drive)

O termo inquieta muita gente e, pela banalização de seu uso em diferentes meios comunicacionais, causa a impressão de que ao final qualquer um pode realizar a Curadoria de Conteúdos, ou como alguns preferem chamar Curadoria Digital ou Curadoria Informacional.

Em todos os casos, a questão circundante não muda muito e por uma questão que é muito mais pessoal do que de qualquer coisa, opto chamá-la aqui de Curadoria de Conteúdos, já que Informação é a matéria-prima com a qual se lida e não utilizo Digital, por crer que o curador pode e deve atuar utilizando a produção de conteúdos para quaisquer suportes.


Já há algum tempo venho pensando em como falar a respeito do tema, tomando em conta especificamente a visão que tenho a partir de diferentes leituras.

Talvez, devêssemos começar pelo contrário, e estabelecer o que Curadoria não é.
Observe:
1. Curadoria não é simplesmente reunir e compartilhar conteúdos de terceiros nas redes
2. Curadoria não se restringe à ferramentas tecnológicas
3. Curadoria não está restrita à um único nicho de profissionais (encontraremos curadores entre profissionais da área de Comunicação Social, Biblioteconomia, Ciências da Informação, Ciências Humanas e outras diferentes áreas de Conhecimento)

Se tomarmos a palavra pela sua origem, temos uma raiz que vem do latim “cura”, zelo por algo.
Os dicionários a dividem em pelo menos 4 significados:
1. pessoa que cura um doente. Ex: Tratou-se com um curador.
2. pessoa que exerce a curadoria de algo. Ex: o curador da exposição
3. (lei) pessoa judicialmente incumbida de zelar pelos bens e interesses daqueles que não podem fazê-lo por si próprios. Ex:  Foi nomeado curador do órfão.
4. (lei) membro do Ministério Público incumbido de defender pessoas ausentes, incapazes, instituições falidas. Ex: Foi indicado para o cargo de curador.

O termo desta forma remete sempre a um sentido de cuidar, zelar, proteger.
Assim, tomo em conta esta noção e saliento que o curador tem em mãos um patrimônio (i)material, e que após todo o seu trabalho converterá para uma socialização.

É papel do Curador de Conteúdos oferecer um contexto e percursos alternativos ao usuário/leitor, de modo a valorizar as informações por ele trabalhadas e disponibilizadas. Sua necessidade e importância tem aumentado na mesma proporção em que quantidades massivas de informações irrelevantes são produzidas dia a dia.

Rosembaum (2011), por exemplo, denomina esse volume de informações crescentes de "tsunami de dados" e Bieguelman (2011) de "dadosfera".

Neal Gabler (2011), que já citei por aqui, chegou a declarar que a era digital nos libertou para a "ignorância bem informada". Isso porquê cada vez mais as pessoas vem se transformando em grandes acumuladores de informação, mas já não são capazes de desenvolver um pensamento crítico e mais aprofundado das coisas. Leia aqui o post que trata sobre esse perfil de coletores e produtores de informação.

Um exemplo disso, é o que o recentemente um repórter do periódico The Guardian observou. Em pesquisa que fez verificou que de cada 100 pessoas online, uma cria conteúdo, dez interagem com ele (comentando ou oferecendo incrementos) e os outros 89 apenas leem, ou seja, continuam como espectadores passivos. Ainda assim é um consumidor que pode ser influenciado. E portanto, alvo de diferentes mídias.


Keen (2009), é outro jornalista e que se coloca como avesso à produção de conteúdos por internautas. Segundo ele, público e autor estão se tornando uma coisa só e podemos estar transformando nossa cultura em cacofonia. Conheça aqui sua principal obra, e veja como ele se refere ao esvaziamento do papel de especialistas e a emergência dos palpiteiros da web que estão isentos de controle, fiscalização, abrindo-se com isso um território livre para plágio, calunia, boataria e propaganda.

A grande diferença aqui é que todos os consumidores podem, se desejarem, ser produtores. Diferente do que ocorria com a mídia do controle que tínhamos antes do tempo de web, onde só veículos institucionalizados podiam produzir conteúdos.

Tomando-se esse universo de grande produção de informação, diferentes pesquisadores veem tentando estabelecer quais seriam as fases que consistiriam esse trabalho de cura.
Segundo Weisgerber (2012), por exemplo, elas poderiam ser divididas da seguinte forma:

1) Achar: identificar um nicho; agregar
2) Selecionar; filtrar; selecionar: qualidade/originalidade/relevância
3) Editorializar: contextualizar conteúdo; introduzir/resumir (não simplesmente postar); adicionar a sua perspectiva;
4) Arranjar/formatar: classificar conteúdo; hierarquizar; leiautar conteúdo;
5) Criar: decidir por um formato: Paper.li, Scoop.it, Storify.Storiful, Twitter curation; creditar fontes
6) Compartilhar: identifique sua audiência; qual mídia usam?
7) Engajar: seja o anfitrião da conversação; providencie espaço; participe; anime;
8) Monitorar: monitorar o engajamento; monitorar a liderança da conversação; melhorar

Gostaria de analisar cada uma em separado:


Curador de conteúdos

O que é?
O Curador de Conteúdo tenta encontrar entre a vasta quantidade de informação que inunda a internet, aquela que é realmente relevante aos seus usuários/leitores. Esse conteúdo de valor deverá satisfazer as exigências de informação que tais pessoas apresentam, e que funcionaria como um antídoto contra aquilo que vem se convencionando chamar de infoxicação, da qual a rede padece de forma epidemiológica.


De acordo com minha experiência considero que as principais fases da Curadoria de Conteúdos sejam assim discriminadas:

Fases:
1 - Coleta
Esta fase é a primeira, exatamente porque é nela em que o curador toma contato com o grosso da informação disponível.
Esse momento equivale a um verdadeiro garimpo, onde vai-se buscar em meio a tudo o que se produz o que verdadeiramente tem interesse para aqueles que são seus usuários/leitores.
Nessa fase, se percorrerá todas as fontes possíveis de informação sobre o tema escolhido para cura e que estão em diferentes suportes e formatos: infográficos, resenhas, artigos, fotografias, tutoriais, etc..,.
Devido a essa quantidade massiva de informação o esforço demandado será grande e poderá significar um investimento alto em tempo despendido.
Importa ressaltar que nesse ponto já seria importante estabelecer hierarquias de valores para o que for sendo encontrado, excluindo-se aquilo que não for relevante ou que não tenha real interesse.
Considero nesse ponto, um grande teste ao curador de conteúdos: aqui começará a provar seu valor e consistência.
Deverá de pronto saber separar o joio do trigo. Não se deslumbrará e nem equivocará facilmente.

2. Seleção e Criação de Filtros
Aqui é que o curador de conteúdos mostrará seu valor tanto como pesquisador como agregador.
Do universo, muitas vezes incomensurável de coisas, buscará critérios para selecionar aquilo que de fato será importante e que merece tempo e investimento em publicação e divulgação.
Um equívoco comum é achar que essa fase será simples e rápida, uma vez que tudo já foi coletado. Mas nem sempre é assim.
Esta fase pode também demandar tempo e esforço para filtrar e hierarquizar.

3. Edição, Elaboração
Nessa fase caberá ao curador acrescentar contexto ao conteúdo a partir de sua perspectiva.
Esta fase tem como objetivo poupar possíveis problemas, já que é nela que se examina como os conteúdos selecionados podem ser adaptados para melhor atender aos usuários. Essa adaptação pode tomar em conta: adequação ao idioma, formato para publicação, o tempo de leitura, links e hiperlinks.
Todos esses aspectos ajudam a definir qual a melhor estratégia de publicação e divulgação e minimizar erros ou fracassos dos mesmos como post ou outro meio.



4) Arranjar/formatar:
Classificar o conteúdo, criar hierarquizações e dar um leiaute à tudo o que selecionou, editou e elaborou.

5) Criar a estratégia de disponibilização/distribuição
Aqui é o momento de decidir por um formato: Paper.li, Scoop.it, Storify.Storiful, Twitter curation, entre outras.
É também o momento de creditar as fontes utilizadas.
Uma vez selecionada, filtrada, elaborada chega o momento de distribuir essa informação.
Aqui a escolha recai sobre quais os meios mais adequados para aquele conteúdo, em que faixa de horário e até o melhor dia da semana para alcançar a maior audiência para o mesmo.
É também a fase onde é testado o grau de conhecimento e interação do curador de conteúdos e sua audiência (público alvo)

6. Engajamento
O curador nesta fase exercitará seu poder de influência, animação entre seus usuários/leitores. Será preciso motivar, trocar e dialogar com sua audiência como forma de estabelecer a relação tão desejada de engajamento.
É o espaço de conversação e onde as relações com os usuários/leitores se estreitarão.
Daí a importância do curador ser conhecedor do tema em que faz a cura. Somente assim será capaz de instigar, tirar dúvidas, trocar, e mais do que tudo: ter uma boa reputação online. A influência acontece exatamente a partir desta qualidade e capacidade.

7. Análise, monitoramento
A curadoria não termina no momento da divulgação.
É fundamental analisar de forma precisa e meticulosa todos os resultados obtidos.
Serão eles que determinarão se houve êxito na empreitada, se os objetivos e o público a que se destinava foram alcançados e com qual grau de assertividade.
Também será nessa fase que se estabelecerá estratégias futuras. A partir de erros e acertos, o curador irá aprimorar suas ações.
Portanto, essa fase tem igual peso e importância


Erros mais comuns a se evitar:

É natural que lidando com um número tão grande de informações e compartilhamentos cometamos alguns erros.
Estes aumentam especialmente se temos que fornecer conteúdos de forma sistemática e contínua.
Estabelecer crivos e filtros pode ser mais difícil do que se imagina.
Assim, aqui algumas dicas:

1. Nunca simplesmente cole e copie
Isso é desmerecer a inteligência e a paciência de seu usuário/leitor.
Cuide para não ficar repetindo chavões e fórmulas prontas. A internet anda cheia disso, e quem busca bom conteúdo não gosta disso.
2. Nunca deixe de se posicionar. Sempre coloque sua posição
O Curador de Conteúdos deve ser antes de tudo um alimentador, fomentador de ideias. O objetivo de uma curadoria de conteúdos não é uma colcha de retalhos! Exercite sua criatividade. Vá além do dado e crie conexões e caminhos para que seus leitores cheguem aos seus caminhos com a ajuda que você oferecer.
3. Dê sempre o crédito à sua fonte inicial
Nunca, nem sob tortura omita a fonte de onde retirou as informações. Não plagie! Busque a autenticidade todo o tempo. Seja profissional em suas escolhas e ações.
Atribua créditos e tenha certeza que será igualmente respeitado e creditado
4. Seja responsável com o que escreve
Como Curador de Conteúdos você não pode colecionar achismos. É preciso que, como especialista, saiba exatamente o que diz e porque. Aqui é uma situação de igual profissionalismo e ética.
5. Vá além das palavras chaves! 
As publicações precisam ter um conteúdo consistente que sirva de acompanhamento a tudo o que está recomendando.
6. Tenha cuidado com infográficos!
O infográfico possui como característica fundamental ser um facilitador de leitura de um conteúdo. Ele precisa e deve, por meio de imagens fazer com que o leitor/usuário fique dispensado da leitura e por meio de imagens intuitivamente apreender um conteúdo.
Mas , o que temos em muitos casos são verdadeiros poluidores de imagens e textos que geram mais confusão e ruído informacional do que qualquer outra coisa. Não se deslumbre facilmente por eles!
Recomendo a leitura desse excelente post que dá muito boas sugestões sobre o que tomar em conta quando se elabora um.

Algumas qualidades que são fundamentais para um Curador de Conteúdos:

1. Precisa ter espírito curioso
Sem essa qualidade estará sempre no mesmo lugar. A curiosidade movimentará suas buscas e será fonte de inspiração para seus usuários/leitores
2. Precisa ter espírito sintético, já que deve funcionar como um filtro entre a informação e seus usuários/leitores.
Seu papel e função é exatamente ser capaz de reduzir tudo ao mínimo indispensável e de forma clara
3. Precisa ser empático
Se interagirá entre conteúdos e usuários/leitores precisa ser capaz de sentir o humor, as vontades, as necessidades de quem está do outro lado.
É muito importante que saiba colocar-se do lado de onde está seu usuário/leitor para perceber quais são as suas expectativas, necessidades, vontades.
Fazendo isso conseguirá um caminho estreito entre si  e o outro e a isso chamamos de diálogo.
A empatia gerará também confiança por parte do usuário/leitor e isso como vimos acima é fundamental na construção de uma boa reputação online.
4. A proatividade é outra característica importante.
Tê-la significa antecipar-se sempre às necessidades e demandas de seus usuários/leitores e significará que sempre estará um passo adiante.
5. O curador de conteúdos precisa ser um especialista do tema que escolher para curar.
Não é possível planar sobre várias coisas.
O Curador de Conteúdos terá que definir, para o bem e qualidade de sua permanência no meio, sobre qual será o âmbito de sua curadoria. Por isso, sugere-se que seja uma área em que domine e que possa ser considerado um especialista.
Caso não o seja, rapidamente poderá ser identificado como apenas um charlatão ou reprodutor puro e simples de ideias alheias. O que definitivamente não deve ser o caso.
Imagino que isso seja a última coisa que alguém que quer ser curador de conteúdos deseje ser.
Portanto, não vá além daquilo que você sabe!
Quem está em busca de bom conteúdo saberá identificar rapidamente imprudências, superficialidades e engôdos.
E caímos novamente no que pode ser o contrário de ter uma boa reputação online
6. Saber exercitar a crítica
Aqui não é a crítica pela crítica, mas alguém com profundidade e consistência suficiente para, ao se defrontar com diferentes informações, saber qualificar o que lê na medida correta.

Graficamente teríamos:



Trocando em miúdos

De tudo o que citei acima, vejo que um cuidado a se ter na Curadoria de Conteúdos é a acuidade nas escolhas. Se não for seletivo e atento pode-se "atirar" para vários alvos e acabar afastando leitores. Sentir esse humor do usuário/leitor é fundamental.

Não vejo como sendo uma atividade a ser desenvolvida de forma restrita por essa ou aquela profissão. O Perfil desse profissional está muito mais ligado a uma habilidade do que propriamente a um diploma. O que de fato importa é que esse profissional tenha profundo conhecimento da área em que atuará. E que não seja necessariamente esse ou aquele profissional oriundo dessa ou daquela formação.

Além disso, o curador deve ser capaz de movimentar o tema e interagir quando for necessário. Se apenas reproduzir as notícias sem o trabalho de posicionar-se sobre as mesmas o conteúdo se transformará rapidamente em apenas mais um site de atualização de notícias. O que não vejo que seja o caso e nem o objetivo desse profissional.

Este trabalho de fato é técnico, mas requer grande habilidade e sensibilidade do outro. Este talvez seja o grande diferencial do Curador de Conteúdo. Conseguir ter repertório que sustente suas sugestões de posts, encontrar temas relevantes e adequá-los ao seu público leitor é uma tarefa muitas vezes árdua e de "alta-costura" (requer paciência e cuidado). É preciso também posicionar-se de forma crítica e além do mais acrescentar dados de modo a complementar a sugestão de conteúdo.

Talvez esteja aí a maior e principal dificuldade da curadoria. Não somos capazes de falar com propriedade sobre tudo o que achamos interessante. O limite para o curador será sempre sua própria ignorância! Para manter a consistência terá que estar focado não apenas ao que o seu público quer, mas também àquilo que pode comentar e contribuir com segurança e profundidade.

É preciso dar corpo e voz ao conjunto de postagens e fazer com que toda uma comunidade interessada no tema tenha conhecimento agregado a partir da verticalização que cabe ao curador. Não é fácil e exige muita leitura e disciplina. Isso eu garanto! Mas de outro lado, é muito bom ver o quanto isso faz da comunidade usuária/leitora coesa e consistente. Considero que, para o meu caso específico, a atuação nos Grupos do LinkedIn são um excelente laboratório de conteúdo e de interação, onde todas as ações que sugiro acima são testadas diariamente.



Mas tudo falharia se não houvessem interlocutores. Sem estes nenhuma curadoria faria sentido!

Referencias
  • Amaral, Adriana; Aquino, Maria Clara. Eu recomendo...e etiueto. Praticas de folksonomia dos usuários di Lst.fm, Revista Libero, n. 24, Ano XII
  • Belguelman, Gisele, Curadoria de Informação. Palestra, USP 2011. [Link:]
  • Jenkins, Henry. Cultura da Convergência, São Paulo, Aleph, 2006
  • Keen, Andrew. O Culto do amador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2009
  • Recuero, Raquel. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, 2009
  • Rosenbaum, Steven. Curation nation. Why the future of context is context. NY: McGraw Hill, 201
  • Site e Infográficos: 
  • Link 1: 
  • Link 2: 
  • Link 3:
Agradecimentos:
  • Lionel Bethancourt por leitura atenta e cuidada e auxilio em diagramar ideias transformando-as em imagens.
  • Victor V. Valera por ser interlocutor atento e me despertar para uma série de temas relacionados à Curadoria de Conteúdos, e que me serviu de inspiração para muitos dos temas tocados nesse post.
Posts relacionados:

5 de abr. de 2014

Quadro impressionista

Por: Eliana Rezende

Teus escritos lido depois de algum tempo compõe para mim um retracto.
Retracto de tons que não são os meus... sombras e rascunhos de paisagens conhecidas e reconhecidas pela familiaridade com o tema, mas nunca realmente vividas em sua totalidade.


Um quadro impressionista, talvez...



Claude Monet (1840-1926)
Ponte Japonesa

Como espectadora diante de uma tela pintada por outro artista resta-me apenas e tão somente impressões.

Vejo nele o retracto do que é o teu viver... do que é tua vida construída ao lado de outrem. Reservo-me o direito de questionar-me sobre o lugar de um espectador em uma tela pintada em um outro tempo.

Qual é o poder de persuasão sobre o artista? Como interferir nas motivações e inspirações para um quadro “tão perfeito”? 
Qual o espaço para o espectador? Onde entra ele? Será ele apenas um consumidor? Ou terá um dia alguma influência sobre as obras futuras? Aquelas que não passam de esboços “rascunhados” no calor do contacto entre pintor e espectador e que teimam em não desbotar nem desaparecer sobre um suporte nobre, de características duráveis, mas que se recente pelo tempo e pelas condições a ele submetidas. 

Realmente não sei das respostas. Queria tê-las!
Escrito por Eliana Rezende - Lisboa,2001
Tê-las significaria poder acreditar que os tons e as temáticas podem ser transformados a  partir da “troca” entre artista e espectador... 



Vicent van Gogh (1853-1890)
Noite Estrelada


___________
______________


Lisboa


Lisboa

2 de abr. de 2014

Em Tempos de Tintas Digitais: Escritos e Leitores - Parte III

Por: Eliana Rezende

Este post encerra a série sobre escritos e leitores em tempos digitais. Longe de significar uma conclusão, coloca-se como sendo intenções de apontamentos impressos à tinta.

Você pode conhecer melhor toda a série de artigos seguindo os pontos destacados no texto a seguir. 


O século XXI está assistindo um ponto onde nossa sociedade coetânea passa pela dessacralização da escrita contínua, linear e exerce características intertextuais, que se fragmentam em múltiplos sentidos. 

Até o advento da web, o universo de produção da escrita era tangível. Poderíamos mesmo chamá-lo de analógico, pois encontrava nas palavras a forma máxima de sua expressão. As palavras nominavam ideias e ganhavam nas tintas impressas seu poder de materialização onde o dito e pensado vinham à existência, corporificavam-se.  

As entrelinhas eram caminhos extras para inquirir e perscrutar o passado, o dito ou escrito. Teciam possibilidades a partir do não dito. Ofereciam descanso ao olhar e esteio para a mente fluir. Descansavam a palavra, ao mesmo tempo em que ofereciam espaços suspensos para a imaginação trafegar. Era comum o leitor simplesmente pousar as mãos sobre os escritos e esperar que ideias e palavras se acomodassem à sua mente. A leitura seguia ritmada por movimentos de ir e vir no texto, no tempo, nos pensamentos. As palavras, degustadas uma a uma pelo leitor iam dando corpo ao que se chamava obra de um escritor. Tempos de comunicação estreita e de um diálogo constante entre o escritor e seu leitor.




Hoje, no entanto, nos defrontamos com um universo de representações e produções que em muitos casos nunca passarão pelos processos de materialização física e que não perdurarão o suficiente para chegar ao futuro. Escritos que surgem e que são substituídos quase que instantaneamente por outros revelam essa fluidez. Muitos são os estímulos e em geral não se dá ao leitor o tempo para estar a sós com o escrito. Espera-se sempre entretê-lo com imagens, movimentos, sons...  

O grande paradoxo que vivemos contemporaneamente é de como uma sociedade que produz tantos registros possa correr o risco de passar para a história como uma cultura quase ou vestígios.

De acordo com Lévy (1998):
"[...] Em vez de um texto localizado, fixado num suporte de celulose, no lugar de um pequeno território com um autor proprietário, com começo e fim formando fronteiras, o do World Wide Web confronta-nos com documentos dinâmicos, abertos, ubíquos, indissociáveis de um corpus praticamente infinito. Enquanto a página de celulose figura um território semiótico, a que aparece na tela é uma unidade de fluxos, submetida às limitações da vazão nas redes. Mesmo se nas suas bibliografias ou notas ela se refere a artigos ou livros, a página material é fisicamente fechada. A virtual, em contrapartida, conecta-nos tecnicamente e de imediato, através de vínculos hipertextos, com páginas de outros documentos, dispersas por todo o planeta, que remetem indefinidamente a outras páginas, a outras gotas do mesmo oceano mundial de signos flutuantes".
Como já ocorria com os suportes analógicos,  para cada fonte, obra ou registro tornado disponível outros tantos foram destruídos, ou em nosso caso nem passaram à materialização (LÉVY, 1998):
"[...] Levando-se em conta tudo o que foi dito antes, seria importante ressaltar que, atrás de cada documento conservado, há milhares destruídos. [...] 
 Na sobreposição de centenas de subjetividades e acasos, ele encerra a chave de acesso ao conhecimento do passado. Reafirmando-se seu senhorio dialético, criador/criatura, o documento, em si, torna-se uma personagem histórica, com a beleza da contradição e da imprevisibilidade, com as marcas do humano".
A fluidez, velocidade e interconexão na produção Web 2.0 colocam lado a lado Memória e Esquecimento, só que no sentido de interrupções de conexões, perdas de links e obsolescência. 

Será necessário entendermos e lidarmos com tais coisas. A obsolescência torna-se aqui metáfora para o esquecimento em tempos de imediaticidade e compartilhamento.


Escrito por: Eliana Rezende - Curitiba, Março, 2014
Sobre os tempos de tintas digitais, escritos e leitores, as questões são muitas e permanecem sem reposta:

Como será, em um futuro distante, tecer o que era a vida privada de toda uma sociedade a partir de correspondências mantidas por meio de correios eletrônicos, enviadas em cópias ocultas ou em blogs que deixaram de existir?

Soluções como herança digital já aparecem em preocupações de inventários e órfãos digitais surgem todos os dias após a morte de produtores de conteúdos em blogs e outras formas de presença virtual. Quem cuidará dessa herança? Quanto dela sobreviverá às perdas inerentes da obsolescência de que são vítimas?

Como mapear as imagens destruídas e por quais motivos, diante da obsolescência galopante de máquinas, equipamentos e arquivos?
Como tratar volume e dispersão de produções individuais e sociais perdidas em uma malha digital? 

E o que dizer da produção da chamada imprensa oficial, que por séculos representava o pensamento organizado de segmentos da sociedade? Representantes em tempos áureos da voz de uma minoria, e que atualmente cede espaço para inúmeras outras vertentes de pensamento que coabitam as sociedades e que se exprimem por inúmeros veículos de comunicação. São vozes dissonantes que registram fatos, impressões e dão sobre eles interpretações subjetivas e locais.

E sobre contextos e circulação? Como defini-los? Eis aqui uma grande dificuldade!
Quem é o leitor e quem é o autor em ambientes da web? Qual é o produto e de quem é sua propriedade?

Indicações materiais de autenticidade (tão caras à diferentes pesquisadores) tais como: assinaturas, datas e outros indícios buscados como preciosidades em cartas, imagens e outros documentos passam a encontrar sérias dificuldades quando não se sabe quem, quando, onde e sob que circunstâncias tais registros foram produzidos.

Nesse sentido, a construção de tessituras sociais com camadas e espessuras próprias necessitará, por parte de quem investiga, maior fôlego e sutileza. Afinal, as relações construídas partirão de universos que irão muito além dos espaços compartilhados geograficamente. Haverá partilhas em espaços virtuais, onde as proximidades e distanciamentos se construirão a partir de outras propostas, usos e funções. Repensar estas teias e compreendê-las em suas dimensões será um grande desafio.

A cultura de consumo e produção excessiva cria um culto ao descarte e a voracidade que impossibilita atividades simples como o reter, o guardar para o porvir. 

Muitas serão as questões para problematização que futuros historiadores e demais pesquisadores encontrarão. Talvez um ponto de partida seja tomar em consideração que a pesquisa, seja ela histórica ou para outros fins, precisa se adequar ao novo ambiente que temos: Escrito por: Eliana Rezende - Curitiba, Março, 2014

A escrita, tal como a leitura, ganha novas formas de manifestação (CUNHA, 2011):
"[...] Ação da mão sobre papéis, sobre telas, sobre pedras e onde mais for possível deixar traços, a escrita registra, inventa e conserva sempre mais ou menos, ao contar, muitos atos da experiência humana. Como ferramenta de uso social, a escrita pode salvar do esquecimento ao fixar no tempo vestígios de passados e, assim, escrever se constitui em uma forma de produção de memória e, por conseguinte, em instrumento de construção do passado."
E aqui chegamos ao ponto inicial: a escrita é ferramenta de uso social e meio de tentar explicar e entender o ambiente que cerca indivíduos, sociedades e culturas. São impressões de mundo que se materializam em diferentes suportes, e que por tentar salvar do esquecimento oferecem vestígios de um passado, de um tempo que não mais nos pertence. 

São com tais ferramentas que o investigador lapida e perscruta o passado, buscando em suas frestas algum lampejo que revele nuances de um tempo que se foi.