24 de ago. de 2015

Vamos parar de educar para a mediocrização!

(escolha a opção abrir com: 
Music Player for Google Drive)

Uma análise sobre os sistemas educacionais hoje vigentes, não apenas no Brasil mas no mundo, revela uma condição decepcionante.
Apesar de tantos desenvolvimentos tecnológicos a realidade Educacional e os ambientes ditos de escolaridade estão longe de formar seres pensantes, atuantes e com espírito crítico e interventor.
Não há inteligência social nos modelos que temos.

O sistema educacional, até por sua conformação física, revela uma dicotomia entre o mundo vivido e o compartilhado em realidade 3.0 para uma vivência "fabril". As escolas mantém seus espaços tal como projetados como os modelos pós industriais diziam que deveriam ser linhas de produção. Num ambiente onde todos são tratados como engrenagens e de forma homogênea fica difícil, não somente reconhecer mas valorizar potencialidades.
A norma assim é mediocrizante. Pensa-se na educação que sirva a todos... na média!


A lógica é muito simples: entra-se na escola com a mesma idade e aos lotes, todos são agrupados formando turmas e séries. A premiação bimestre a bimestre é atingir as notas, definidas de forma generalizante e que sempre estipulam uma nota mínima considerada média. E isso em geral é conseguido por um desempenho que premia memorização, pura e simples, em alguns casos a cola aparece como um recurso ainda pior e mais medíocre. Os que responderem de forma mais eficiente a todo o processo repetitivo e mediocrizante serão considerados aptos a seguir para a série seguinte. Estão promovidos. Até que um dia ganham um diploma. E com este pedaço de papel nossos alunos medíocres em série seguem para um mercado de trabalho.
E que, pasmem, querem criatividade, espírito crítico, colaborativo e independente!

Estranhamente, conteúdos são ensinados segmentalmente, como se nada tivesse relação com nada. Embala-se conteúdos em série e estes são descarregados série a série pelo primeiro desavisado de plantão que resolver assumir os mesmos. Os tantos especialistas em suas respectivas áreas não fazem a menor ideia como sua disciplina conversa com a outra, ou como se relaciona com a vida vivida extramuros ou a que se compartilha em rede. E assim, todos seguem usando materiais prontos e cumprem cronogramas, ementas, avaliações. Imaginam que ao conseguir as tais notas de média terão ajudado a constituir um educando e formado minimamente um cidadão social. Usam-nas como régua para medir supostos avanços ou cumprimento de metas, objetivos e afins.

Perde-se tempo enorme ensinando sobre a escravidão no Brasil, por exemplo, e em nenhum momento se discute sobre xenofobia, preconceitos, modelos produtivos e afins. Sempre há aquele limite chamado de politicamente correto e assuntos tabus para uma escola.
Mas não estamos falando em formação? Exercício de cidadania? Papel na sociedade? Não entram nesta discussão o papel biológico que torna os seres diferentes por fora, mas biologicamente semelhantes em sua essência?! Não seria uma conversa para todas as disciplinas?

Ensina-se sobre a antiguidade grega e romana, mas não se fala sobre o papel da democracia e como nos tornar cidadãos conscientes, hoje. Como foi a construção da ideia de cidadania, moral, gênero a partir destas civilizações? Como a geografia, a filosofia, a biologia, o pensamento racional via áreas exatas construíam a ideia de cidadão? E como este cidadão se relaciona hoje com tais temas? O que o mundo contemporâneo fez com tais assuntos? Isso tudo fica fora dos conteúdos.
E me pergunto: então para quê o sistema de ensino?


Tentam ensinar sobre países estrangeiros, suas capitais, economias. Mas será que os alunos que chegam de carro e vão embora de carro conhecem o seu bairro? Sabem o que é uma periferia? Fazem ideia de como vivem pessoas sem rede de esgoto? Que projetos seriam capazes de realizar para limpar e filtrar água, captar água de chuva ou aquecer água usando placas solares feitas com materiais alternativos? Sabem construir uma?
E a pergunta principal: os professores de geografia, ciências, física, química, biologia... sabem?


Ensinam-se sobre invenções, mas como discutir o papel das mesmas em nossas vidas, suas aplicações e caminhos? Qual a diferença entre invenção e inovação? Todas as áreas de saber estariam ali envolvidas.  E fico perplexa de ver como ninguém relaciona nada com nada.

Será que um aluno sabe como funciona um rádio? Uma TV?  Já desmontou um ou outro? Sabe quais são seus componentes? De que forma o som e a imagem se propagam? Como a música toca? Como nossa audição e visão funcionam?  Enxergamos com os olhos ou com o cérebro? E os animais escutam e veem da forma como escutamos e vemos? E uma máquina fotográfica? Como eram as primeiras? Como funciona uma caixa preta? Como a imagem se forma? Como se processava a revelação de um filme? Como é hoje uma imagem digital? O que significa do ponto de vista da representação um retrato? Como a arte representava as pessoas? Como nos fazemos representar? Onde todas estas imagens produzidas diariamente são armazenadas? O que é a nuvem? Como nossos arquivos pessoais são armazenados?  Por quanto tempo? Por quem e para quê? E quando não estivermos mais vivos, como ficarão nossas contas na internet?


E de novo pergunto: os professores de todas estas disciplinas correlatas e afins sabem fazer? Se interessaram algum dia em fazer as perguntas e ir atrás de respostas?

Notem que o que movimenta tudo não são conteúdos prontos: são as perguntas que geram a ação e a consequente produção de conhecimento. O professor não tem que saber, o aluno não tem que saber. Mas todos podem estar envolvidos na busca. E na retroalimentação de mais perguntas para ir mais longe e além.

Vejam quantas possibilidades interdisciplinares há e que são perdidas diariamente.

Será que isso para ser ensinado precisaria ser feito em divisões de turmas e idades? Não seria muito mais criativo, interessante e divertido que os alunos escolhessem o que queriam aprender e como? Independente de idades e turmas?
Não seria muito mais interessante que os professores funcionassem como mentores nestas descobertas, criassem projetos e os desenvolvessem ao longo de um período? E aí sim teriam resultados muito mais gratificantes, instigantes e interessantes?
Por exemplo: como criar uma rádio comunitária, elaborar as programações, produzir conteúdos, inventar produtos para serem comercializados, criar noticias. Ou seja, um único projeto pode fazer com que todas as disciplinas estejam envolvidas! 


Lembro-me de uma vez quando ministrava aulas, para as antigas 7ª e 8ª séries, numa escola tradicional carmelita. Não suportava a ideia de ter que cumprir aulas que vinham encaixadas em sistema pedagógico, no formato Anglo. E então resolvi que para falar dos anos JK e posterior (1950-1970) iria fazer um trabalho que envolvesse todas as turmas. Iríamos reconstituir o que ocorria no Brasil e no mundo na época. Os alunos se reuniram por interesses: uns foram para a arquitetura, outros engenharia, outros foram para a moda, outros o período dos festivais de rock como Woodstock e vários outros ficaram com MPB. Houveram os que construiram maquetes, outros criaram um desfile de moda e ainda outros tiraram letras de música para tocar ao vivo. Haviam os que eram tímidos demais, mas ajudavam nos bastidores: faziam as músicas passarem de forma correta no desfile, cuidavam da iluminação (eram donos da logística para o evento).

Passamos o semestre todo preparando o evento e na última semana de aula a apresentação no auditório reuniu a escola inteira, professores, pais e tivemos teatro, dança, show de rock com bateria e guitarra ao vivo tocado pelos alunos. Desfiles e uma exposição de maquetes pelos corredores. Frequentávamos o laboratório de informática e usávamos a internet para várias pesquisas e inspirações. Aqui, um à parte interessante: o laboratório era muito equipado e tínhamos um computador por aluno, e isto em 2005. E APENAS eu usava para minhas aulas! O resto do tempo o laboratório era apenas para fazerem alguns trabalhos ou jogar em horas vagas. Nenhum outro professor usava.

Os pais no período anterior à apresentação me cercavam nas reuniões preocupados, perguntando que, como aquilo seria ensinar. Me perguntavam: "E o conteúdo?!" Minha coordenadora ficava preocupada com o exame que teriam que fazer para continuar tendo o sistema de ensino validado.
Eu penas sorria...

O resultado?
Nunca a nota geral do sistema foi tão alta! Os alunos me diziam: "Prô, eu lembrava de tudo o que estávamos fazendo... sabia tudo!". Isso tudo para dizer, que não era fácil, lidava com meus colegas de trabalho torcendo o nariz: os alunos começavam a ficar excitados antes de minha aula, e era normal ficarem após as aulas discutindo o projeto uns com os outros. Nunca ficava em sala de aula com eles. Andava pela escola toda vendo locações, debatendo. E com os alunos espalhados por toda parte. Tivemos aula até embaixo de um pé de amora em dias quentes.
Mas foi extremamente gratificante, e me mostrou que é muito possível.
Sei que tanto eu quantos eles sobrevivemos e aprendemos muito!

Lembro-me de ir ao cinema com todos numa matinê assistir o filme "Cruzada", e como éramos praticamente nós, eles se levantavam durante o filme e me perguntavam coisas e eu falava. Era uma troca intensa e muito rica. Foram ao filme com tudo lido e depois queriam falar sobre o assistido.
Uma experiência agradabilíssima!

Turmas de 7ª e 8ª Séries do ano de 2005 - Colégio Nossa Senhora do Carmo - SP

Em muitos casos os próprios alunos não querem essa mudança de paradigmas. Se ressentem destas ousadias.
Ministrando aulas na faculdade costumava (e porque era obrigada a) dar provas, mas estas eram com consulta e em duplas. E não existia para mim certo ou errado. Dizia que queria que desenvolvessem um raciocínio e me convencessem. Mesmo errado o que valeria seria a construção.
Como era difícil para alguns!
Me diziam que minhas provas eram as piores. Mas exatamente porque nunca cobrei algo decorado e pronto. E aí está o limite imposto por um sistema no qual tinham sido formados; uma linha de montagem. Não eram/são capazes de pensar por si sós!
Tão triste!

Por isso, meu clamor: vamos parar de educar para a mediocrização! É muito mais rico e muito mais satisfatório para todos. Experimentem!


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20 de ago. de 2015

Estou de casa nova! Venha me visitar!

Por: Eliana Rezende

Talvez você me acompanhe há algum tempo, talvez tenha chegado agora. Em qualquer dos dois casos, venha visitar minha nova casa. A ER Consultoria | Gestão de Informação & Memória Institucional
Tenho uma casa novinha pronta para você me visitar.
Como toda nova casa está cheia de detalhes que eu faço questão que conheça. E por ser tão espaçosa e oferecer tantas possibilidades, passará a ser chamada de Portal ER Consultoria.
A minha ideia é congregar num mesmo espaço tudo o que você precise em matéria de assessoria técnica, consultoria e capacitação, voltados à atender as áreas de Gestão de Informação, Gestão Documental, Gestão de Conhecimento, Curadoria de Conteúdos e Memória Institucional.
Se já é meu seguidor, deve estar perguntando:
"E o Pensados a Tinta?"
Ele continuará onde sempre esteve, seja também meu convidado e continuará contribuindo com inquietações, pensamentos e visões.
Para ver se gosta do Portal ER Consultoria mando uma foto.
Mas claro que quero mesmo que você venha me visitar! Para chegar lá é só anotar o endereço ou clique na imagem: www.eliana-rezende.com.br 
 http://eliana-rezende.com.br/ 

Para facilitar sua visita, apresento como o Portal ER Consultoria foi estruturado. Lá, você irá encontrar:
Sobre a ER - Uma apresentação da minha empresa e também, os caminhos por onde andei. São muitos caminhos e trilhas que me ajudaram a lapidar e formar. Além disso, vou te contar como minha empresa pode ajudar a sua instituição e quais os benefícios disso.
Soluções - Nesta página você saberá sobre as consultorias, assessorias técnicas e capacitações que ofereço e meu universo de atuação institucional. Em muitos casos, só a consultoria não basta. Daí oferecer múltiplas soluções que complementam uma consultoria. E no final, um portfólio de "Cases", dos projetos que tenho desenvolvido.
Trilhas de Aprendizagem - As "Trilhas de Aprendizagem" foram especialmente desenvolvidas para profissionais de Informação, Gestão de Conhecimento e Memória Institucional. Optei por ter a "Trilha Principal" e a "Trilha Alternativa". Qual seguir? Você escolhe o caminho. Afinal a Trilha é para dar liberdade e ação ao processo de aprendizagem, e que deve ser seu. Caso precise, ajudo a decidir montando uma trilha perfeita para o tamanho de sua necessidade.
Portfólio * - Aqui encontrará uma coleção dos projetos que tenho desenvolvido profissionalmente.
Publicações - Nesta página há um registro de minhas publicações acadêmicas e técnicas, já que o Blog tem seu espaço no Portal e também no Pensados a Tinta.
Contato - Um formulário para você fazer contato e/ou escrever qual a sua necessidade ou como posso ajudá-lo.

  

Venha me visitar...

Estou à sua espera.
Entro com a hospitalidade e você com a curiosidade!

Brinde de Boas Vindas

Ainda tenho para você um pequeno brinde. Convido-o a participar do webinar ER1 (free) - "Informação: matéria-prima para Conhecimento e Inovação". Inscreva-se no portal na página abaixo.
http://eliana-rezende.com.br/index.php/cursos/webconferencias/
 

11 de ago. de 2015

Por ruas e cruzamentos numa Pauliceia desvairada



Por: Eliana Rezende

A maior metrópole do Brasil é famosa por seus congestionamentos que em determinados dias chegam a 340 Km. Um fato que não é novo e que revela uma cidade pulsante, com um ritmo acelerado.

Em dias recentes um debate intenso se colocou quando o Prefeito da cidade decidiu para o bem da diminuição de acidentes reduzir a velocidade nas marginais. Em pouquíssimo tempo uma onda de descontentamento se fez. Em verdade, a cidade sempre conviveu com muitos e graves acidentes. A maioria quando ainda eram usadas apenas carroças. 

Convido-os a irmos atrás no tempo e percorrer esta Pauliceia:
Av. Paulista - 1928
Tal como outras capitais do mundo em fins do século XIX e nos princípios do século XX, São Paulo também via sua vida urbana crescer e se modificar. Assistia atônita uma gama imensa de transformações nos hábitos de vida, modos de produção e formas de deslocamentos e adensamento populacional.
As ruas da Pauliceia encontravam por parte dos que a administravam problemas de todas as ordens e constantemente eram alvo de acalorados discursos realizados na Câmara Municipal ou mesmo na imprensa diária, onde os problemas urbanos ganhavam o tom de reivindicações populares ou mesmo de críticas aos poderes constituídos. 
São Paulo convivia com um aumento indiscriminado de sua população. Tal aumento, originário desde os tempos logo após a abolição da escravatura - que lançou nas ruas escravos forros e libertos - ao mesmo tempo recebia nas mesmas ruas aqueles que iriam prosseguir realizando o trabalho dos escravos: eram imigrantes italianos. Seguidos de outras etnias e nacionalidades que chegavam em levas da Europa.

Com tantos circulando pelas ruas da cidade o burburinho aumentava, e o ritmo de vida se acelerava, gerando cada vez mais políticas que visavam regulamentar os espaços, gestos e modos de viver a urbanidade, eram denominados códigos de postura. Temas como o trânsito e o barulho na cidade eram tratados periodicamente, e em muitos casos, era patente a tentativa de inclusão do maior número possível de situações passíveis de punição e regulamentação.

Os sons que vinham da vida urbana eram muitos e variados e colocam a quem deles se ocupava a árdua tarefa de elencar uma vasta lista. A imprensa em geral colaborava neste sentido, e com certa frequência publicava artigos como o Dr. J. M. de Azevedo Marques, intitulado “A tranquilidade publica perante a Municipalidade”, onde o autor fazia menção a alguns destes sons da vida urbana:
 (...) Há dias passados um illustre scientista extrangeiro queixava-se, pela imprensa, com razăo e escarneo, de ser S. Paulo uma cidade insupportavelmente barulhente alludindo ao ruido exaggerado dos bondes, dos automoveis, dos sinos, dos vendedores de jornaes, dos caixeiros de cafés, da cachorrada a uivar, dos pregoeiros ambulantes ensurdecendo, atordoando, causando mau humor, impedindo o repouso, socego, a saude e o trabalho.(...) Que diferença contra nós, si compararmos isso com o que vimos nas cidades mais agitadas do velho mundo: Londres, Paris, Berlim Bruxelas, Lucerna, Genebra, Vichy (...), onde tudo se passa calmamente, em relativo silencio: os vehiculos năo incommodam pelos ruidos, os sinos săo raros e commedidos, os automoveis fazem “chic” em năo buzinar, ninguem grita, năo há guizos estridentes; e por isso, alli se pode conversar nas ruas, nos cafés, nos vehiculos, nos escriptorios, como se pode repousar, dormir, viver. (...) Aqui impossível. (...)”[1]
Como sempre a comparação depreciativa tomava como parâmetro o Velho Continente (modelo buscado como referência de civilidade). O articulista ocupa-se de tecer as comparações procurando mostrar quão distante São Paulo estava de cidades e civilizações europeias.

Os sons desta cidade que crescia num ritmo vertiginoso vinha de diferentes meios de transporte, personagens urbanos, ambulantes e seus pregões, feitos para chamar atenção ao seu trabalho, ou mesmo de animais que trafegavam soltos por ruas, ruelas e avenidas.

Dentre os instrumentos mais comuns estavam entre outros: o uso de sinos, campainhas  além da própria voz do mercador em portas de teatros, praças, e mesmo de porta em porta.

Rua XV de Novembro - São Paulo

O artigo prosseguia em sua minuciosa descrição e se tornava interessante quando se referindo ao trânsito, relacionava a convivência com determinados aspectos do comportamento urbano com a ausência de moral. Ou seja, quanto mais imoral e próximo da barbárie a desqualificação moral mais suscetível ao hábito de sons que perturbavam a ordem alheia. Observe:
“(...) Há é certo, uma parte do povo que se não incommoda com tudo isso; são os insensíveis, os pandegos, os endurecidos e, podiamos dizer, os idiotas, cujas funcções meramente physiologicas e impertubaveis predominam sempre sobre as moraes; comem e bebem sempre bem, dormem sempre bem, riem sempre bem, vagam sempre bem, passam sempre bem, como si o mundo fora só elles. Mas essa minoria de “homens-vegetaes” não merece dictar regras ou servir de padrão aos outros, ás senhoras, ás crianças, aos velhos, aos doentes, aos trabalhadores, aos estudiosos aos sensiveis, aos civilizados. (...)”[2] 
Ritmos e deslocamentos: a cidade veloz
Este mesmo trânsito, considerado caótico, era o centro de duras críticas e revelava um articulista preocupado. Referindo-se ao barulho e a forma descuidada que muitos veículos eram conduzidos e os resultados em números de acidentes, acrescentava:
 “(...) A norma –  “é gritar e matar” – o bonde dispara, tocando os tympanos em selvagem Ze-Pereira, e vai esbarrando e esmagando, haja o que houver; o automovel faz a mesma cousa: e assim substitui-se a pericia pelo barulho, entendendo os heróes conductores que buzinando e badalando podem matar livres de culpa e pena. (...)”[3]
Os registros de acidentes de trânsito são muitos e variados, incluindo-se batidas de automóveis em outros veículos, em postes ou em outras formas de obstáculos, bondes que se chocavam ou saíam dos trilhos e atropelamentos em geral, eram a maioria das ocorrências policiais. Ao mesmo tempo, era um indício de um número crescente de pessoas circulando pelas ruas e experimentando uma nova vivência: relacionada com os ritmos da velocidade e das deslocações pelo espaço social. Algo que até então não era possível sem as invenções como automóveis, bondes e trens. 
Bonde 41 saiu dos trilhos na rua Carandaí, esquina com a antiga rua Inhaúma, entrando no terreno da Sociedade Amigos da Casa Verde
Os relatos de tais ocorrências em vários casos transformavam-se em inquéritos policiais redigidos por delegados responsáveis nas diferentes circunscrições, tornava-se uma espécie de crônica policial sobre os problemas relacionados ao trânsito da cidade. Uma detida leitura nos ajuda a perceber como esta cidade se movimentava e se relacionava com seu entorno.
Carlos Pimenta, Delegado da 5ª Circunscrição em São Paulo, é um destes que chamo de cronistas policiais. Sua escrita miúda, recheada de pequenos detalhes ajuda a dar cor e tom às impressões de uma autoridade sobre diferentes infrações ocorridas no espaço da cidade, tentando  da  melhor  forma  encontrar argumentos  que viessem convencer de culpa ou absolvição as partes envolvidas. São relatos envolvendo crimes de diferentes ordens, em especial os que são relacionados à moral e bons costumes (inserem-se aí os crimes de vadiagem, prostituição, jogo, defloramentos, homicídios, entre outros), além claro, das infrações de trânsito.

Citando algumas destas infrações, o delegado Carlos Pimenta comenta sobre os atropelamentos e a forma considerada descuidada de motorneiros e passageiros conduzirem e se portarem nos veículos que transitavam pela cidade:

“(...) Trata este inquerito da eterna questão dos atropellamentos por vehiculos. Enquanto tivermos leis benignas para o caso, os taes senhores condutores, chaffeurs e cocheiros andarão sempre sem o necessario cuidado, á matroca, a catar as pernas de um pobre mortal, ou mandal-o sem demora para outro mundo (...)”[4]

No caso específico deste inquérito, Carlos Pimenta retomava a questão da ausência de uma lei de trânsito que viesse atender de perto a necessidade de punir eficientemente infratores perigosos. A tônica sobre as leis de trânsito é constante e em sua fala, e em mais de uma oportunidade retoma este tema, em especial em relação ao número elevado de acidentes envolvendo atropelamentos e/ou imprudência da parte de motorneiros, condutores, passageiros e pedestres. São os casos, por exemplo, dos seguintes inquéritos:
1)      “(...) É um eterno problema a questão de desastre por automoveis e dia a dia os atropelamentos vão crescendo de modo assustador. Este inquérito trata de mais um, cuja victima é o menor Antonio de Toledo, com 6 annos de idade (...) O automovel que apanhou o menor tinha o nº 2950 e (...) o auto caminhava com marcha acelerada e com pharóes apagados (...)”[5]

2)     “(...) O veso antigo de todos os conductores de vehiculos, nesta Capital, andarem em vertiginosa carreira, procurando a morte para si e para os outros, é coisa que lhes póde tirar.

São multados, processados, castigados, afinal dentro de nossas benignas leis e dos nossos liberrimos regulamentos. Mas a attração, a sympatia pela vertigem de corrêr é inevitável. (...) Devido a essa loucura, ou melhor, essa falta de prudencia, este inquerito registra um desastre desta natureza. No dia 10 do corrente, Segunda feira, ás 21 horas, o bonde de passageiros nº 423, na linha Tamandaré, tendo como conductor Abilio Pires, chapa nº 476 e como motorneiro Manoel de Moraes, chapa nº 877, ao fazer a curva da rua Castro Alves para entrar na rua acima referida, por imprudencia absoluta do alludido motorneiro, saltou dos trilhos, subindo no passeio, ficando as primeiras rodas sobre o mesmo (...)”[6]
Carlos Pimenta se coloca como mais um dos que criticam as leis em vigência na capital e a forma considerada branda de tratamento dos infratores em geral. Em diferentes circunstâncias se refere às leis de trânsito como sendo benignas demais para serem respeitadas.
Além da velocidade e descuido dos condutores de veículos, os inquéritos nos fazem saber sobre a imprudência cometida pelos que trafegavam nas ruas. Um destes refere-se especificamente a distração e ao hábito sempre corrente de saltar dos bondes quando estes ainda estavam em movimento:
“(...) ás 21 horas, João Rebulhedo, que guiava o automovel nº 4016 pela Avenida Brigadeiro Luiz Antonio com destino á Avenida Paulista, seguia atraz de um bond da linha Paraizo quando, perto da rua Conselheiro Ramalho, o conductor Daniel Paes, que se achava de folga viajando neste bond, ao descer delle, em movimento, foi apanhar e ferir este conductor (...)
(...) João Rebulhedo explica em suas declarações que seguia o bond numa distancia de dois metros quando, inesperadamente, saltou delle esse conductor de folga. Sem tempo de evitar o desastre, pois Daniel, ao descer, lhe passou á frente – conseguiu ainda evitar sua morte, com a monobra rapida que fez. (...)”[7]
A prática de saltar dos bondes quando estes ainda estavam em movimento, além da travessia imprudente de pedestres acabaria por levar diferentes propostas à Câmara de vereadores de São Paulo sobre a aplicação de multas. Dentre alguns destes projetos temos, por exemplo:
“(...) Não existe, entre nós, a regulamentação do transito de pedestres. Essa falha é absurda, tanto quanto, no meu entender, essa regulamentação é o ponto de partida para uma boa legislação que venha resolver esse problema. (...) em Londres, (...) qualquer pessoa que atravessar uma rua em momento improprio, não pagará sómente multa; será presa immediatamente.
E, si essa imprudencia der origem a um desastre, responderá pela parte dos dannos que provocar (...)”[8]
Abaixo uma imagem no Largo de São Bento, onde é nítido o movimento de subir e descer dos passageiros com os bondes em movimento. Além disso, transeuntes, caros e bondes compartilham o mesmo espaço exíguo, gerando ao pedestre inúmeras chances de atropelamentos quer por um quer por outro. 
Bonde elétrico aberto no Largo de São Bento, na capital paulista, por volta de 1930, circulando na linha de São Caetano (criada em 1902 e extinta em 1942)
As discussões mostram-se acaloradas e seguem-se diferentes sugestões para um problema que não conseguiu no decorrer do tempo uma solução satisfatória. 
Prova disso é que já estamos no século XXI e enfrentamos praticamente as mesmas questões, criticas e ponderações.
 Destas ocorrências há diferentes registros fotográficos detalhados pela perícia técnica e interessante quanto ao fornecimento dos tipos de acidentes[9], ruas de maiores incidências, e assim por diante. As imagens tomadas como documentação para incorporar o inquérito revelavam em detalhes a forma como o acidente se desenvolveu: em alguns casos estas fotografias recebiam anotações em vermelho indicando a trajetória do veículo até encontrar o seu destino contra um poste, um muro ou mesmo outro veículo. As rotinas de acidentes acabaram por instituir uma prática de registros fotográficos para os acidentes que ocorriam pela cidade e revelam mais uma aplicação da fotografia para fins comprobatórios e jurídicos. 
Acidente com o bonde Casa Verde - Penha (55) na rua Japuiba com rua Anhauma (atual rua Antônio Lopes Marin com rua Dr. César Castiglioni Júnior

A lei determinava as velocidades máximas dos veículos motorizados. Nos termos da lei:
 “(...) no perímetro central, em ruas e horas de grande transito, dez quilometros e nas demais, vinte quilometros, no perimetro urbano, trinta quilometros e, no suburbano, quarenta quilometros (...)”]0
As velocidades acima descritas procuravam através de uma regulamentação criar formas de diminuir os problemas ligados às altas velocidades dos carros, como batidas e atropelamentos muito correntes no período. Os espaços de regulação e tráfego colocaram à cidade muitos debates e o consenso nunca foi obtido. 

Distantes no tempo e próximos na dificuldade, temos a Prefeitura de Haddad alterando limites de velocidade nas marginais alegando exatamente os mesmos problemas de mais de um século atrás: excesso de velocidade, acidentes e atropelamentos. 

De fato, uma relação de poderes e fascínios entre homens, máquinas e leis. Nem sempre conseguem andar juntas e em benefícios de todos. 

*
Saiba mais
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Post extraído de minha Tese de Doutorado, intitulada: "Imagens de cidade : cliches em foco... São Paulo e Lisboa (1900-1928)", defendida na UNICAMP, em 2002.

[1] Marques, J. M. Azevedo. “A tranquillidade publica perante a Municipalidade”. In: Jornal O Commércio de S. Paulo, 29/04/1914.
[2] Idem.
[3] Ibidem.
[4] Inquérito redigido por Carlos Pimenta, Delegado da 5ª Circunscrição de São Paulo, em 16.08.1922.
[5] Idem.
[6] Ibidem.
[7] Inquérito redigido por Armando Soares Cayuby, Delegado da 6ª circunscrição, em 08.02.1922
[8] Projecto nº 3, de 1924. Coleção Actos e Decretos do Municipio.
[9] Os registros fazem parte da coleção existente nos Arquivos do Museu do Crime, da Academia da Civil  de São Paulo.  
[10]  Lei nº 2.264, de 13 de Fevereiro de 1920. Coleção Actos e Decretos do Municipio.

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