23 de ago. de 2014

Contradições em vidas modernas

Por Eliana Rezende

Como se traduz o mundo em textos?
Vejo nas áreas de humanidades e em especial no meu caso uma vontade imensa de beber o mundo e depois o colocar em tintas sobre papel. Uma tarefa árdua já que o humano e suas dimensões transcendem nossas possibilidades circunscritas a um espaço recluso em papéis, tintas e outros formatos.

Nem tudo cabe nas entrelinhas e traduzir tantos paradoxos e diversidades muitas vezes beira ao um trabalho insano tomado à punho por poucos. As sociedades se complexificaram e cada vez mais falta-nos condições de compreender e analisar tudo o que nos ocorre.
A modernidade vive cada vez mais paradoxos:


Apartamentos cada vez menores encontram no mercado móveis e TVs cada vez maiores.
Se a casa aumenta em tamanho perde em número de moradores. As famílias cada vez mais vivem os imperialismos dos filhos únicos.  Os aparelhos domésticos mais usuais tornam-se cada vez mais complexos e compartimentados em funcionalidades para facilitar atividades domésticas, e cada vez mais comemos em fast foods!

Produzimos mais alimentos em diversidade e quantidade ao mesmo tempo que desperdiçamos de formas muito mais grandiosas e eficientes.
Competência na arte de perder e desperdiçar.

Os veículos cada mais potentes e com tecnologias que o fazem sair do ponto V0 ao V10 em segundos são sepultados entre tantos outros de igual formato, que perfilados entopem vias e consomem seus combustíveis altamente tecnológicos e desenvolvidos em laboratórios de ponta.

Flores, frutos e espécies paisagísticas são cada vez mais pesquisadas e cultivadas para casas que se estreitam em terrenos e se cobrem de concretos ou se erguem em edifícios que comprimem pessoas e objetos. Pontes estaiadas e rodovias se espalham por áreas urbanas aumentando trechos para que os congestionamentos tenham onde ir e se esplahar. Tecnologias e plataformas favorecem compartilhamentos na exata medida em que se torna mais fácil o botão curtir do que o gesto de trocar, tocar, escutar...


Produzimos quantidades massivas de dados, números, estatísticas que ninguém lê, vê ou sabe para o que servem! Quem se importa com tantos infográficos?!
Criam-se jargões em profusão na razão inversamente proporcional à originalidade criativa de ideias e conteúdos.
Empobrecidos....opacos...repetitivos em fórmulas, palavras, feitos e desfeitos

Informações abissais geram um mar revolto de dados, onde a maioria se afoga e se perde entre uma braçada e outra. O mundo em conexão mostra dia a dia como as sociabilidades e convívios pessoais são cada vez mais raros. Intermediadas todo o tempo, as relações simplesmente se desterritorializam: habitam um locus virtual onde estar significa apenas a distância e o alcance de um clique.

Tradutores instantâneos simulam estreitamento de pares que possuem idiomas diversos. Mas a construção de parágrafos é cada dia mais difícil e rara: um mundo que dia a dia se simplifica a 140 toques e no máximo uma imagem.
Produzimos imagens de tudo e de todas as partes para a seguir ser descartadas pela próxima que vem no instante seguinte. Afinal quem se lembrará da anterior? Para quê servirá?

Um mundo que orbita e se vangloria de ampliação dos espaços virtuais e globais, vê barreiras ideológicas se erguerem por territórios, etnias, gêneros, religiões, culturas levando morte, destruição, genocídios, extermínio aos que dividem os mesmos espaços e fronteiras. Intolerâncias, desrespeito e ódio ao diferente.


A industria farmacêutica avança em pesquisas e remédios e, cada vez mais, doenças se alastrarem e dizimam territórios inteiros. A expectativa de vida aumentou, ao mesmo tempo que relações emocionais perderam anos de sua vida útil. Longevidade de casamentos e relacionamentos assistem uma franca diminuição de seus tempos de parceria.

A vida simplesmente não basta a mais ninguém. O produto de consumo é a juventude eterna! Silicones, pílulas e cirurgias plásticas simulam aprisionar um tempo que já passou. Encastelada em um corpo refeito ano a ano a mente envelhece e descobre o hiato cada vez maior entre o ser e o ter.

São tantas as pergunta, os paradoxos! E tão poucas as respostas...

Maurice Blanchot disse certa vez, em palavras que ficaram famosas, que as respostas são a má sorte das perguntas. De fato, cada resposta implica fechamento, fim da estrada, fim da conversa. Também sugere nitidez, harmonia, elegância; enfim, qualidades que o mundo narrado não possui. Tenta forçar o mundo numa camisa-de — força na qual ele definitivamente não cabe. Corta as opções, a multidão de sentidos e possibilidades que a condição humana implica a cada momento. Promete falsamente uma solução simples para uma busca provocada e impelida pela complexidade. Também mente, pois declara que as contradições e as incompatibilidades que provocam as questões são fantasmas — efeitos de erros linguísticos ou lógicos, em vez de qualidades endêmicas e irremovíveis da condição humana.


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3 comentários:

  1. Outra vez, parabéns pelo artigo. Não ficou nada sem entendimento.

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  2. Parabéns! Flui...densa e leve a sua tecitura que veste bem a sociedade paradoxal que nos permeia... que invade nossos lares e ruas, transformando vidas e oportunidades num grande teatro de sombras vazias...

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